sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Benilde e a Verdade que não se mostra




Quando Pilatos interroga a Cristo sobre o “testemunho da Verdade”, ouve a única resposta que a Verdade Mysterium tremendum de Cristo pode dar: o silêncio. Pilatos não estava “do mesmo lado, ethos, Nomos”de Cristo; portanto, jamais poderia ver a sua Verdade, fixado como estava em uma concepção civil e política da aletheia. Benilde, como a  Gertrud de Dreyer, Giordano Bruno, o Ivã Karamazov de Dostoiévski estão do lado de Cristo, e como ele não podem comunicar aos outros a sua Verdade porque habitam dimensões irredutivelmente distintas: quando Benilde entra em cena, Oliveira atesta a “sua verdade que não é deste mundo” por esta estrepitosa música dodecafônica de parada. Em um filme como Benilde, não está dada a possibilidade de dialogismo, justamente pelo motivo destacado acima: para que o Mesmo alcance o Outro, é preciso que tenha um pouco deste Outro dentro de si; (Lichtenberg: Se um macaco olhar ao espelho, jamais verá um monge.) Assim, ninguém está exatamente do mesmo lado de Benilde; apesar da bonomia caritativa da criada, da sapiencial discrição do padre e  do noivo bem-intencionado, jamais chegarão lá. Quando Benilde nos aborda nestes planos frontalíssimos de inquisitivos onde, custe o que custar, o cinema há de atestar a verdade de cada ser, é com os olhos estrábicos de tão ensandecidos pela sua inabordável Verdade: estes olhos foram feitos para o fora de quadro da câmera ou o fora de campo da Significação, nunca para encarar um outro ser humano. O décalage supremo entre os personagens se exprime no découpage como sequência de monólogos; e a impossibilidade de chegar ao diálogo- Mesmo como parte do Outro e vice-versa- ainda se assevera por esta câmera judiciosamente atenciosa à escuta dos personagens; a partir do segundo ato ( quando Benilde está propriamente sendo julgada em sociedade, pelas diversas funções e valores mobilizados naquela comunidade), Oliveira nos mostra sua versão do Gestus brechtiano -mostrar o ato de mostrar-, ao designar “o ator escutando”: este jamais interage diretamente com o Outro porque, como disse, a transcendência do Desejo do Desejo de Benilde já condenou a todos à recíproca incomunicabilidade, ao No trespassing do limiar. Talvez este seja, com a obra de Edward Yang, o filme mais rigoroso jamais feito sobre a incomunicabilidade, tema tão retoricamente desvitalizado pelas vagues dos anos 60.


Uma última coisa: há um padre francês que, entre o túmulo vazio de são Marcos e o Te deum de São João, acha espaço para um panegírico da virgindade mariana: “(...) a virgindade é um dogma essencial, pois designa precisamente uma intercessão divina sobre o curso da Natureza, um engendramento do ser não pela Natura, mas pela palavra”. A palavra em Benilde, seguindo à la lettre esta fórmula, é o texto de José Régio, e  Benilde é o fruto desta conjunção entre o idealismo temático de Oliveira e seu modernismo cinematográfico- aqui, particularmente materialista, ao nos indicar de forma demonstrativa os “meios” de que o cinema se serve para canibalizar o teatro, no princípio e no fim do filme. Para que serve o teatro, neste filme que, à força de respeitar as rubricas da cena, no entanto e em um mesmo movimento o submete de força à semântica do cinema? o teatro ( e teatro é, basicamente, texto, dicção, gesto) é o révelateur do cinema, o meio que industriosamente vai desencadear a manifestação de seus sortilégios; assim como a virgindade mariana é o révelateur da mão de Deus, que neste gesto escandalosamente teatral rescinde os contratos de sua criação primeira ( a Natura) e instaura os direitos do artifício da representação, da sua arte: a palavra. 

sábado, 23 de janeiro de 2016

Anos 30: os anos






Me and my gal, South Louis Blues, Artists and models: estas três obras-primas são a amostra desconcertante não apenas do gênio heteróclito de Walsh, mas sobretudo do horizonte heterogêneo e heteróclito que os anos 30 ofereceram a todos os cineastas ( outros que tem filmes favoritos meus pelos 30 são Dwan e Ulmer). Afinal, do que se trata? Vaudeville, thriller, comédia doméstica, melodrama familiar, paródia ( já tardios no começo de tudo!)...que espécie de demônio carpideiro os coçava para dar à luz estas sínteses aberrantes, pelo menos sob o prisma nosso, trop trop moderne? Holywood nunca foi tão livre, amoral, inteligente, maliciosa, sofisticada e desbundada- em suma: dialética- quanto nestes espécimes a que, sem consolo e sem remédio, chamamos com uma certa displicência leviana ( ou precipitação anacrônica) de "clássicos". Clássicos, como Lourcelles nos dá tanto a entender , são os dialetas dos primitivos ( profundidade de campo de Méliès e Secondo de Chomon que volta no neo-realismo), assim como os modernos são os dialetas dos clássicos. é preciso que alguma coisa permaneça reconhecível por nós, já que a diferença é urdida pelo mesmo material do Mesmo: voilà! e nos anos 30, a máquina ainda não estava devidamente oleada, concertada, bref maquinada ( maquinal).

Comparados a Madame Satã, todos os ulteriores filmes de De Mille são clássicos, mas aqui eu me dou ao luxo de identificar clássico com acadêmico, e  ver que O maior espetáculo da terra poderia ter sido dirigido por um outro diretor igualmente genialmente clássico. Idem os westerns tardios de Walsh e Ford e Dwan.; mas o que fazer por exemplo com os filmes de Ford com Will Rodgers, espécimes muito particulares de kammerspiel bucólicos e irônicos?, que já antecipam a boa televisão? não podemos fazer nada, senão curvarmo-nos a sua singularidade ( de léxico, de Ethos, de Nomos)...é um outro mundo, encapsulado dentro deste outro mundo possível, exuberantemente possível que foram os anos 30, inclusive os do pré-Code ( mas não só). Ouso mesmo dizer que o cinema de Angels have wings, Man to man, os filmes judeus de Ulmer só seriam possíveis numa época em que os judeus tinham acabado de desembarcar na indústria propriamente dita ( Griffth fora um ensaio, Griffth sempre seria um ensaio, um cineasta experimental como poucos: sempre experimentou brilhantemente a si mesmo), ainda despachavam malas, menorás e amantes , e sobretudo tinham os olhos brilhantes ( xcomo os mórmons, como os pentecostalistas, mas estes não se meteram com o cinema) porque a criança judia neles finalmente realizaria a almejada heresia: "não adorarás a imagem de teu Deus". O cinema dos anos 30, talvez o maior cinema do mundo, foi fruto do exílio, da heresia, da pobreza; em suma: de tudo aquilo que foi devidamente desapropriado, desaparecido, violentamente expulso da mídia, televisual e cinematográfica atual. Danem-se! o futuro nos dirá quem venceu.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Kommunisten: O tempo que resta



O cinema de Straub e Huillet é um cinema de conversão; do verbo mediado dos escritores que “presentificam” ao verbo apofântico das origens, que nos dá a ver as coisas enquanto coisas: ventos, colinas, gestos, zumbido dos ventos e das abelhas participam desta festa do Verbo inaugural. Kommunisten acrescenta a esta experiência de manifestação in loco a experiência da montagem, que na história do cinema correspondeu a um outro Logos e  Nomos; aqui, as duas vertentes reúnem forças para a batalha de afirmação de uma soberania política e ontológica que teve como heróis não apenas o comunista do título ( inspirado em novela de Malraux) como Empédocles, os operários egípcios de Trop tôt, trop tard; o Franco Fortini do Cani dei Sinai; a comunidade “por-vir” da cooperativa de Operai contadini; e a estátua de terracota telúrica que interpreta Huillet em Pecado negro, que ao final do filme subitamente adquire presença encarnada ( ou seja: ainda Verbo) e conclama a todos os outros: Neue Welt.

A montagem é o lugar de um congraçamento, a cristalização de uma velha nova História, a clareira onde os heróis e os semideuses do Mito e da História ( História, Mito, estaremos sempre neste carrefour, de cá para lá) se reconhecem num venerável espelho: Jean-Pierre Vernant nos diz em seus estudos sobre o fantasma, o cadáver e o divino na Grécia antiga que havia na entrada de um templo de Diana um espelho baço, no qual um rosto de devoto se reconhecia vacilantemente; era o rosto do Deus, inacessível na profundidade de campo “castrada” da superfície impolida, que dava sentido a tudo. Um espelho de rigor anti-subjetivista, um Logos que celebra a negação enquanto tal ( todas as comemorações aqui encenadas carregam o estigma da repressão, do Oblivium histórico, do massacre), uma poética na qual a épica é “remontada” pela elegia e pervertida em seus propósitos metafísicos de fundação; o cinema de Straub e Huillet celebra e resiste, mas sem nunca abdicar deste sal ático do negativo, que empresta a esta orquestração cadenciada entre um Bildungsroman mítico e uma égloga historicista ( aqui, os signos, os códigos, os agentes  são invertidos e confundidos com rigoroso método de enxadrista) um sopro trágico de coups de dés divino: mas o que seria do divino sem a palavra do homem, como do homem sem os lances do Divino? O cinema de montagem aqui não se opõe ao “plano sequência e locação”; ele reconcilia, mas num outro plano, o plano do “plano túmulo” de que falava Daney; sem a Morte, o desastre, a perda de si-mesmo, nunca seremos nem diremos nada: o tempo da significação é o tempo que resta. Aquele, porém, que sobreviver às duras provas da História e do Mito receberá o dom de ser, de dizer e de reunir- e presente maior haverá?



terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Flammes




O primeiro cinema de Arrieta capturou ( presentificou) as fantasmagorias da infância e imprimiu-as na superfície empreinte de verité do plano, que a tudo retém, consagra, fixa. O arquétipo desta primeira operação de conversão do invisível no trop visible do plano de cinema era o Anjo. Mas com Flammes já estamos na adolescência, e o fantasma é francamente erótico: um bombeiro, cuja função é justamente “matar o fogo” da jovem ( e poucas vezes a apalavra e a coisa serviram reciprocamente ao literal e ao simbólico sem perder, respectivamente, em pujança pulsional e força de analogia). Mas sabemos , desde Sade até Lacan, que o Desejo é um fantasma- ou seja: nada de determinado, de este ou aquele, etc; conjuga-se, portanto, infinitivamente ( talvez seja a única força infinita que habita o homem); portanto, como não é isto nem aquilo, ele pega, compartilha-se, transmite-se: o jovem americano tinha um demoníaco fascínio pelo fogo, até o fogo consumir toda a família num incêndio; a amiga de Caroline passa a sofrer de flatus vocis, e  acorda nos braços de outro bombeiro: o fantasma erótico da jovem “contaminou” a todos os outros. O Desejo não é coisa – ousia, substância-, e  sim energia: invisível, habita em tudo, décors e Natura inclusive. A maior parte do filme os personagens escrutam, espreitam, auscultam a iminência de sua chegada, e  isto dá aos planos uma aura de suntuosos monólogos mediúnicos: é sempre no interstício entre a presciência do que virá e a sua chegada que o personagem se posta; e Arrieta não precisa sequer indicar literalmente este caráter intersticial do décor, situando-os em limiares, atrás de portas, antecâmaras. Não: o plano já está de tal forma imbuído de energia, de stimmung, de teluricidade que basta deixá-lo lá, à espreita; convertidos em bons entomologistas, contentamo-nos em dedicar toda a nossa ansiosa atenção a discernir a chegada do Desejo, deus que desta feita dispensou a metamorfose animal e preferiu a  modesta máscara lumpen do bombeiro. 

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Vingança de uma mulher: O olhar impossível




A vingança de uma mulher, como um filme com o qual guarda semelhanças de pathos e de rubrica, Ne touchez pas la hache, é antes de tudo um travesti literário; embora literal adaptação de Aureville, é uma interpretação do espírito das novelas de Stendhal: um mundo consumido por paixões estertóricas, por opróbrios suntuosos e sacrifícios crepusculares; só que este Sturm und drang “aparece-nos” de forma enviesada, através da distância ironista de um observador, senão desinteressado, pelo menos impenitente- aquele que não tem nada a perder, e  pode se dar à opulenta arte da contemplação sem sofrer os revezes da “vingança de Medea” ou do olhar da Medusa: olhar demais e atentamente para o monstro pode liberar em nós o que o espelho guardava zelosamente.

O menino do teatro, o “raconteur” da história, o décor ritualmente “assinalado” em Vingança de uma mulher são este terceiro olho, este discurso indireto livre de que as tiradas, as digressões,  o estilo expedito e lacônico de Stendhal nos dão a versão literária, navalha afiada pelo sal ático da verve satírica. Já o olhar da “puta nobre”, que se queima até os abismos de uma negra consumição erótica, é aquele que se atreve a ultrapassar os limites civilizados da ribalta ( a pena, a narrativa, o teatro; em suma: da representação), e encarar soberanamente o mundo, em sua abjeta grandeza; só o contracampo das estrelas na noite imemorial está à sua altura, à sua baixeza: seu discurso é repetido em off na contra plongée do céu, sublinhando-se aqui o pertencimento da mulher, possuída pelo horror vacui da paixão impossível,  a uma dimensão pré ou pós-humana, obscenamente cósmica; ninguém mais ousaria assumir- sobretudo em século tão amaneirado, no qual o Eu se refrata em incontáveis prismas de salão e de retórica, furtando-se com método ao tète-à-téte com o próprio daimon- este embate trágico no qual ela se perdeu para sempre; assim, o seu interlocutor a olha uma última vez, mas é como Perseu “ousa” encarar a Medusa: protegido pelo espelho. O espelho aparece novamente na cena seguinte, enquanto a esgrima Noblesse oblige encena-se ao fundo, do som e da profundidade de campo; o nosso homem prefere, como todos ( “Se eu tivesse achado a comida de todos vocês, eu teria me fartado dela como todos vocês e morrido como todos, “Um artista da fome”, Kafka), a antecâmara apaziguada da subjetividade, de que o espelho é o demonstrativo emblema heráldico: as superfícies anódinas de um riacho raso.


Se Rita Azevedo Gomes se recusa a mostrar o corpo ou o rosto da heroína, não é por litote classicista ou recalque oitocentista, de que o filme seria o porta-voz mimético; um filme que chega tão longe quanto Lucio Fulci no imanentismo da carne decomposta ( a cena do coração) não mais conseguiria recuar, dado que a partir de um certo ponto, como o mesmo Kafka um dia descreveu, não é mais possível voltar atrás: o mecanismo adquire demoníaca autonomia, pertinência e impetus teleológico. Se o corpo nos é recusado, é porque a duquesa já pertencia ( como Balibar na despedida no convento de Touchez pas la hache) a um recuadíssimo, vertiginoso e espectral habitat de Distância, onde já nenhum olhar ou súplica as poderiam resgatar: e o cinema, arte materialista, sabe que o morto repousa naquela fronteira interdita, impossível, de que o apelo do Cristo ressuscitado a Madalena é o grande significante: Noli me tangere. 


sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Um dos meus textos favoritos no Dicionários de cinema: Jean Narboni sobre O desprezo.


http://dicionariosdecinema.blogspot.com.br/?zx=8082729a567e231d

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Les jous òu je n'existe pas, Fitoussi





Gérard Blain, certos Hanoun, certos Guiguet; acrescentem à lista outro sublime “bressoniano”: Fitoussi. Les jours òu je n’existe pas é a mais material das parábolas, a fábula mais presente. Junto ao materialismo do cinema, enfatiza-se com igual rigor o seu paradoxo opaco, rasteiro: ser arte “cercada de invisível por todos os lados” ( o fora de campo, de quadro); ser um conto iniciático, um ersatz metafísico da experiência, uma contemplação nirvânica do Real. Mas também o registro metódico ( maníaco) dos rastros que o corpo imprime às outras matérias, o relatório de devires fantasmagóricos, o sismógrafo de superfícies ressoantes de passos, encontrões e horror vacui. Uma e outra coisa? Não, a mesma e Outra. Sempre pensei que a porta que se fecha ao final de The searchers podia ser obra de homem, de morto, de sonho. O que importa é que a porta se fecha. Sim, o efeito antes da causa: como se o fito de toda matéria, de seu ricochetear e esbarrar no mundo, fosse suscitar a posteriori o aconchego da mão de um anjo guardião, de um demônio de sonho e cinza, de um Deus aposentado a reverberar no verão- que estas Fúrias e ninfas só existissem como efeito de um teatro das matérias, de um concentrado e transido trabalho de inervação do plano pela matéria. Não podemos esperar outro milagre; não devemos.

domingo, 8 de dezembro de 2013

Texto meu na Revista Lumière sobre o "maneirismo pobre" de Júlio Bressane.

http://elumiere.net/especiales/bressane/manierismo_bressane.php

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Nova edição da Cinética, com pauta James Benning. Texto meu sobre Landscape suicide e Acéphale, de Patrick Deval.

http://revistacinetica.com.br/home/landscape-suicide-de-james-benning-eua-1987/

http://revistacinetica.com.br/home/acephale-de-patrick-deval-franca-1969/

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Máscaras e mascarados



Há um dos documentos mais relevantes que conheço sobre cinema: um filme “didático” feito por Rohmer para a televisão francesa sobre Louis Lumière, em que ele intercala trechos de seus filmes com um papo com os mestres Langlois e Jean Renoir. Em um determinado momento, Langlois nos dá a chave para compreender a complexa dialética mobilizada ali, e que tenta, pelos meios civilizados ( de la litote, comme d’habitude) que eram comuns aos três homens, desmistificar esta oposição, tão cara à crítica acadêmica, entre Lumière e Méliés. Ele nos lembra que Lumière “mandou” os operários saírem novamente da fábrica, porque a porta se fechava muito abruptamente e  a câmera não tinha tempo de “dar o tempo necessário” à captação daquela experiência lumpemproletária; fora o fato de que Lumière filmava num certo cadre ( limite espacial), num limite temporal ( devido à pobre sensibilidade à luz da película ortocromática), etc...Ele reencenava o espaço-tempo.

Todo cineasta sabe que o espaço que ele vê quando chega na locação não é o espaço da percepção ordinária, uno e contextualizado; é já um espaço pré-decoupado, pré-montado mentalmente- já “significativo”, proto-ficcionalizado. A prise de vue baziniana já carrega o selo do sentido e o filtro da magia. Um grande ( um dos maiores) filmes que trabalha esta dialética é Le sang des bêtes, de Franju, em que o lirismo e o horror contraem núpcias: o excesso de realismo da morte dos animais acaba por dar uma impressão de super-realidade ( surrealidade), por intercessão das mediações- as imagens dos arrabaldes “feéricos”de Paris. Feéricos no sentido de que estes nichos de clochards e crianças ao léu viram depósitos onde se acumula todos aqueles objetos encantados ( porque retirados da linha de produção de “troca” do capitalismo) que Rimbaud cita em Uma Temporada no inferno: refrões velhos, árias de ópera pitorescas, bonecas sem cabeça, etc ; objetos que, como as ruínas da capital francesa, inspiraram a Benjamin os collages , entre documentais e escatológicos ( mas há diferença, a esta altura?), de seu último livro-monumento.

Máscaras, de Noêmia Delgado ( 1976)  é destes filmes em que a dita oposição, desmascarada comme il fault, retoma o seu constelacionismo dialético: aqui, trata-se de fixar o olho “autopsista”, escrutinador e mecânico da câmera sobre as ficções, os jogos e as glosas do que acontece em torno.

Em cinema, arte onto-numinosa, basta saber ver para ver do que é feito o mundo: de mistério, maravilha e horror. É apenas isto o que todo grande filme nos sussurra e morde.

ps: e tem completo no youtube...

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Serial killer, Adachi 1969



A flânerie adquiriu no Ocidente uma aura- a aura!-, um stimmung fenomenogógico espectralmente utópico: nela  e por ela, o modus vivendi funcionalista da “divisão social do trabalho” capitalista era esterilizado: ao flertar com as vitrines e os transeuntes, deslocamo-nos e divergimo-nos , mas não apenas no espaço; diferimos, dessacralizamos o tempo que deveria ser destinado à produção, preenchido pelo modus operandi. Este diferir é democrático- ou antes: qualquer, casual, brincante. Serve ao artista, à criança, à puta, ao serial killer ( não seriam todos estes – antes da divisão social do trabalho, nosso vero vírus psicótico- flâneurs?). É isto que nos sussurram estas circunvoluções suburbanas, estas digressões inscritas sobre o cal e o concreto, estes mabusianos travellings fantasmas, estes devires-derivas: por aqui passou ( foi) um serial killer de  nome, identidade... ao filme pouco importa, como a qualquer ente digno de pronome: o seu espaço-tempo fantasma incrustou-se no espaço-tempo gregário e laboral dos que se apropriam da rua como meio- trajetória, via expressa, sarjeta- para fins que não lhes dizem respeito: gregários, laborais, quaisquer. Os travellings trânsfugas, os zooms estrábicos, os faux-raccords zuretas de Adachi tentam justamente inventariar este espaço ininventariável dos seres que habitam a cavidade, a fresta, a  réstia: crianças, mendigos, mortos,anjos e serial killers. E não é a estes zumbis ontológicos, grafittis do possível- nutridos com o sangue, o esperma e os pesadelos dos homens de bem e de ponto- que se destina toda arte digna de memorabilia?

quinta-feira, 14 de março de 2013


Nova e bela Revista Cinética no ar, agora com parâmetros críticos superiores- leia-se: hermêuticos, ensaísticos. Além do mais, uma extraordinária e divertida entrevista do Francis com Luc Moullet, espécie de cartão de visitas da nova cara e coragem da revista. Textos foda do Fábio Andrade e do Filipe Furtado, respectivamente sobre Caverna dos sonhos esquecidos e Django do Tarantino, cobertura de Berlin...E aqui links de quatro textos meus que me deram muito tesão e orgulho de escrever, sobre a escrotice Amour, Morrer como um homem ( pauta J.P.Rodrigues), O cinema de F.S.Ossang e O sopro do presente sobre O que se move de Caetano Gotardo. Enjoy!


http://revistacinetica.com.br/home/amor-amour-de-michael-haneke-francaalemanhaaustria-2012-2/


http://revistacinetica.com.br/home/o-que-se-move-de-caetano-gotardo-brasil-2012/


http://revistacinetica.com.br/home/o-cinema-de-f-j-ossang-da-parte-maldita-e-outros-luxos-punk/


http://revistacinetica.com.br/home/morrer-como-um-homem-de-joao-pedro-rodrigues-portugalfranca-2009/

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Bombando meu canal no youtube com novos vídeos. Postei A Morte e o Diabo do Sytephen Dwoskin completo,  dois curtas do Alain Guiraudie- La force des choses e Tout droit jusqu'au matin-, a cena final de Le mirage do Guiguet, além de trechos de Nocturno 29 do Portabella, Tam tam e Le chateau de Pontilly do Adolfo Arrieta.


quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O diabo provavelmente










"Vade retro satana / Numquam suade mihi vana
Sunt mala quae libas / Ipse venena bibas". 
Evangelho de são Marcos, Jesus a Pedro. 8:33
Jesus a Pedro, Evangelho segundo São Marcos, 8:33

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Chaplin, Renoir, Lourcelles, Biette

Acho que não postei por aqui, mas tinha traduzido para o Dicionários um texto do Lourcelles sobre Verdoux, e  agora do Biette sobre Renoir, "a pretexto" do Monsieur Lange. Vão agora os dois links.

http://dicionariosdecinema.blogspot.com.br/2012/12/o-crime-do-senhor-lange-de-jean-renoir.html


http://dicionariosdecinema.blogspot.com.br/2012/11/monsieur-verdoux.html

sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Holy motors




Féerie e terrorismo sempre foi um patrimônio francês: Lautréaumont, Rimbaud, Le sang d'un poète ( Cocteau), todo o surrealismo, o Buñuel dos primeiros filmes, Feuillade, O testamento do doutor Cordlier ( Renoir), Pierrot le fou, Change pas de main ( Vecchiali), Les nuits rouges ( Edith Scob!), Grenouilles de Arrieta, e claro Carax... Holy é a consequência lógica desta implicação surrealista tenebrosa: representar é um ato abissal e selvagem, que consiste em violar as superfícies do Logos e do Ethos e deixar emergir à flor da imagem o fantasma de que esta se nutre... Temos um filme sobre performance(s)? não apenas. Ou antes: filme sobre a performance como um ato terrorista que consiste em transformar o corpo organismo numa máquina, plástica e energética, de possessão demoníaca pelo Outro(s). A operação de guerra consiste antes de tudo em estratégia mediúnica de possessão; mas para que esta infiltração do Mesmo pelo Outro se dê, é necessária uma prévia e correlata operação de despossessão de si: o milionário vai assumindo todos os personagens à margem dele ou contra ele, os que o ameaçam ou o desmascaram: o traficante, o músico flanêur, o mendigo, o monstro do Ça, Cordelier...ele se acumplicia com o que prepara a sua destruição ( a nossa revolução?); não à toa, as mortes que Oscar vai sofrendo ao longo do filme... Neste corpo frágil e alquebrado – poroso à abertura , figurativa e dramática, ao circuito de personas- , o terror aparece sob o regime da metamorfose ( os tantos corpos , imagens e dispositivos que Holy nos dá a ver, reinventando o pós-moderno por um discípulo de Cocteau). Travestir-se em Outro, ser um xamã de presenças: esta é nossa arma e nossa maldição; a arma “mimética” de que dispomos para um tempo que nos exclui, a maldição que nos conclama a transformar o opróbio do capitalismo tardio em festejo de desterritorialização e- em um mesmo diapasão e movimento- crepuscular ocaso do Si Mesmo. Si, Orfeu; no pasarán.


quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Il giorno della vita, Alessandro Blasetti


Questão que sempre me intrigou: do status de um contracampo...em Fassbinder, os contracampos são sempre muito distantes, mensurando a alienação dos personagens ( de uns para os outros e deles para o décor): uma radicalmente nova perspectiva sobre o mundo se abre; da sarjeta ao bureau de almoxarife , da chaise-longue de Guermantes à prisão de Notre dame des fleurs ( perversão sub-reptícia inter-planos: estariam tão distantes assim?)...nos clássicos, é quase sempre uma straigt line, que confronta ( antes: designa) as distâncias e as iminências, as arenas pupilares, e posterga ( sublima, ratifica, difere) o confronto propriamente: Noblesse oblige. No cinema primitivo, é choque frontal ( Lourcelles): proscênio contra ribalta.

Nesta obra-prima de sournoise crueldade, o contracampo assinala aquele espaço geralmente interdito no cinema de gênero: a clareira da testemunha, ser alheio à saraivada comumente reservada ao campo e contracampo, ente que habita fantasmagoricamente o fora de campo , instância fundamentalmente temporal ( memória, imaginário) que serve para estruturar nossa percepção contínua de um filme, arte descontínua -découpada espacial e temporalmente- por excelência...O filme narra a invasão de um convento de monjas dominicanas por partigiani fugindo dos alemães. Estas, por voto rigoroso consagradas à clausura, estão impossibilitadas de encará-los face a face; mas uma reconhece num dos partigiani o homem que matara seu marido, ex-oficial, e... Talvez o fato de Blasetti centrar no espectador ( ou testemunha) o efeito das ações do filme seja diegeticamente legitimado: a clausura necessariamente infunde à forma do filme um pudor suplementar, clássico-clássico, em que o olhar é baliza em surdina – sismógrafo, trop tard de- da experiência. Em que experienciar o evento é necessariamente chegar tarde demais- é reservar à pupila, nicho de separação, de a posteriori- sua sôfrega chaga. Olhar é sempre chegar tarde demais, oras!

...mas como estou pouco me lixando para diegeses e outros xaropes narrativos, geralmente suportes para críticos medíocres, centro-me na estratégia existencial- numinosamente- genial desta reserva, desta “centralidade e frontalidade” ( norma clássica , academicamente aposta por Mourlet como regra tout court)- centradas sobre a face do Outro. Pois é dele que se trata...não necessariamente humano: a santa que balança e quase cai, imantada e finalmente fulminada por forças que de transcendentes já nada tem ( a Guerra, a excitação sexual dos solados,o ressentimento do Madre). Ou a kammerspiel sequência na cave, quando do ataque dos alemães, em que blocos tensos e coalescentes de uma treva que insiste em se colar aos corpos constituem ilhotas de intensiva, energética expectação. Tudo e todos no filme de Blasetti são testemunhas- tudo é contracampo. Giorno della vita é dos filmes mais geniais que já vi porque, infiltrado e stacatto de planos sequências por todos os lados- e quão camerísticos e incisivos são seus tons e gestos, quão evanescente sua crueldade e violadora sua presciência!-, é um filme sobre o contracampo: sobre a impossibilidade de sermos plenamente num único e definido ponto do espaço-tempo, de precisarmos necessariamente nos deflagar e dispersa num Outro para sermos: assim como todo ente deve necessariamente desaguar numa alteridade parra ser reconhecido, em cinema campo e contracampo, plano e sequência etc.

E aqui não vai nenhuma punhetagem “logofílica”- sociológica, ontológica... O filme é de uma sobriedade desconcertante, de uma vitalidade mortificante, de um furor clarividente. Sinto-me tentado então a enumerar os paradoxos de São Bernardino de Siena ao enaltecer o esplendor do milagre onto-teológico da Concepção mariana: aqui, o infinito faz-se finito, a fulminação narrativa, a crônica de campanha Sturm und drang demoníaco, partida de xadrez entre a História e o Divino... mas Blasetti tira partido da crueldade inerente à estética clássica: nada se mostra ( ou não parece aparecer), até que seja tarde demais, e vejamos o horror que intersticialmente se mostrara até ali, sem que estivéssemos à altura dele: os cadres no cadre ( sequência genial da câmera “feito mira”, quando do combate primeiro com os alemães, no bosque defronte da igreja); a surdina e o “ser-rastro” com que os personagens deslizam entre um campo e outro, transformando um concertante Merry-Go-round de cortes em farfalhante sussurro de Nihil , em plano sequência cerzido entredentes ( o quão Hitchcock parece infantil, ao lembrarmo-nos dos fondus en noir de The rope!); e sobretudo esta genial intuição de mostrar-nos (?) a presença percebida unicamente como ausência- o tempestuoso e o ominoso sob a máscara do transparente e do rarefeito ( como na missa de Te Deum, da qual só vemos as pequenas, divertidas e ciciantes disputas entre os partigianni, em torno da igreja, contrapostas contra o reticente murmúrio de Eterno que rói o campo)... Este roer espelha por sua vez um canibalismo menos caricioso e bem-aventurado, digamos... os alemães continuam a rondar ( como o Deo Gratias de Haydn entoado aqui), e ao final voltarão a penetrar o campo, com exclusão de tudo o mais... O contracampo como fulminação, só que diferida- o tempo de um filme...

Ao final, esta“centralidade e frontalidade “ , em que a câmera parece corroer a pátina do rosto com os estilhaços da finitude, intenta se justificar... quando do evento monstruoso que fecha o filme, só vemos - na profundidade de campo em que o microcosmo do convento coalesce com o macrocosmo abissal da História à porta- a “coxia” do horror: os comandos extasiados em fúria, a marcha horizontal de soldadinhos histéricos, o braço marcial do comandante, o estrabicamente desvairado olhar de um tenente que parece recobrar a lucidez, por um momento... quando a câmera enfim retrocede e- partigiani agora reunidos, após a morte dos invasores- re-descobre o teatro do horrível massacre que encerra Giorno della vita, a cena, o proscênio e a ribalta do cinema clássico reconciliam-se: a quarta parede ( contracampo) retoma seu lugar no plano sequência, e dança... mas volta a se fechar ( a se entrincheirar ou entombar), no corte final em fondu...
Não foi para isto que nasceram os clássicos? Para dançar? Bizet, Kleist, , Musset, Shakespeare... affaire de coreografia, númen, Espírito ( do grego Pneuma, Ar: Leveza rules). Dancemos sobre os escombros...



Texto meu sobre O som ao redor o Kleber Mendonça na Cinética.

http://www.revistacinetica.com.br/osomaoredor.htm

quinta-feira, 4 de outubro de 2012

Cosmo




Cosmopolis é uma obra-prima, mas isto é um lugar-comum espectral que não diz ainda porra nenhuma do filme. Aliás, espectral diz. Ah, sim: a a teoria de Austin sobre os enunciados performativos talvez sugira um caminho para falar de um filme de ação onde a ação consiste unicamente em discorrer sobre a sua imponderável impossibilidade em nosso tempo e em nosso mundo ( mundo? tempo? do que se trata mesmo?).

"Enunciados performativos são enunciados que não descrevem, não relatam, nem constatam absolutamente nada, e, portanto, não se submetem ao critério de verificabilidade (não são falsos nem verdadeiros). Mais precisamente, são enunciados que, quando proferidos na primeira pessoa do singular do presente do indicativo, na forma afirmativa e na voz ativa, realizam uma ação (daí o termo performativo: o verbo inglês to perform significa realizar). (...) Exemplos: Eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo; Eu te condeno a dez meses de trabalho comunitário; Declaro aberta a sessão; Eu te perdôo. Tais enunciados, no exato momento em que são proferidos, realizam a ação denotada pelo verbo; não servem para descrever nada, mas sim para executar atos (ato de batizar, condenar, perdoar, abrir uma sessão, etc.). Nesse sentido, dizer algo é fazer algo. Com efeito, dizer, por exemplo, Declaro aberta a sessão não é informar sobre a abertura da sessão, é abrir a sessão."


sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Carpenter, Vidor, Hawks: diacronia do Kairos

Billy the kid ( King Vidor, 1931)
Rio Bravo ( Howard Hawks, 1959)
Assalto à 13 dp ( John Carpenter, 1973)...

são virtualmente o mesmo filme. Uma América encurralada num espaço concentracionista, cagando-se de medo do Outro, da História, do Recalcado ( e subentenda-se seus respectivos contextos políticos apolcalípticos: o crack de 29 e o New deal; a sombra "mefistofélica" de Maccarthy ainda pairan

do sobre o liberalismo de Kennedy; e Wartergate).

Ou: da necessidade de substituição de uma crononologia evolutiva\exposivitiva por uma diacronia genealógica para captar a verdadeira temporalidade que imanta, anela e dispersa obras de arte...uma História de.

...pois sabemos que para os antigos Cronos era o tempo da sucessão efemérica, da acumulação anódina de dados e fatos "quaisquer"; era no tempo Kairos que se davam as grandes sínteses- a aurora da Revelação e da Redenção ( e aqui, do sentido)...
 

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

O sentido da História Delahaye

Traduzi o texto do Michel Delahaye sobre Legiões de Cleópatra de Cottafavi no Dicionários de cinema. Divulguem. Texto foda sobre filme fodaço.


http://dicionariosdecinema.blogspot.com.br/2012/09/o-sentido-da-historia.html